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"Sistema multiportas: o Judiciário e o consenso", Ministra Nancy Andrighi e Juíza Glaúcia Falsarella Foley
(20/07/2008 - 19:35)

As recentes análises sobre a explosão de litigiosidade no âmbito do sistema de justiça têm destacado a cultura excessivamente adversarial do povo brasileiro.
 
Embora esse fenômeno revele uma dimensão positiva ao expressar a consciência dos cidadãos em relação aos seus direitos, o culto ao litígio, porém, parece refletir a ausência de espaços -estatais ou não- voltados à comunicação de pessoas em conflito.
 
Com raras exceções, não há, no Brasil, serviços públicos que ofereçam oportunidades e técnicas apropriadas para o diálogo entre partes em litígio.
 
Diante de tal carência, as pessoas utilizam os meios de resolução de conflito disponíveis: a aplicação da "lei do mais forte", seja do ponto de vista físico, seja do armado, do econômico, do social ou do político -o que gera violência e opressão; a resignação -o que provoca descrédito e desilusão; o acionamento do Poder Judiciário, cuja universalidade de acesso ainda é uma utopia.
 
Aqueles que acessam a via judicial enfrentam as dificuldades impostas por um sistema talhado na lógica adversarial. Os profissionais do direito nem sempre dispõem de habilidades específicas para a condução de processos de construção do consenso. Ao contrário, o que se verifica, em geral, é a aplicação de técnicas excessivamente persuasivas, comprometendo a qualidade dos acordos obtidos.
 
Nesse contexto, ainda que o sistema de justiça se esforce em modernizar os seus recursos -humanos, materiais, normativos e tecnológicos-, a dinâmica da explosão de litigiosidade ocorrida nas últimas décadas no Brasil continuará apresentando uma curva ascendente em muito superior à relativa aos avanços obtidos.
 
Para o sistema operar com eficiência, é preciso que as instâncias judiciárias, em complementaridade à prestação jurisdicional, implementem um sistema de múltiplas portas, apto a oferecer meios de resolução de conflitos voltados à construção do consenso -dentre eles, a mediação.
 
Por essa técnica, as partes constroem, em comunhão, uma solução que atenda as suas reais necessidades. O mediador não julga, não sugere nem aconselha. O seu papel é o de facilitar que a comunicação seja (re)estabelecida, sob uma lógica cooperativa, e não adversarial.
 
Além de efetiva na resolução de litígios, a mediação confere sentido positivo ao conflito, pois patrocina o diálogo respeitoso entre as diferenças; o empoderamento individual e social; a consciência das circunstâncias em que repousam os conflitos; a prevenção de futuros litígios; a coesão social e, com ela, a diminuição da violência.
 
A mediação, ao lado de outras técnicas de edificação do consenso -a conciliação e a negociação-, pode ser manejada por agentes efetivamente capacitados para tal função e adotada tanto nas demandas pré-processuais quanto nas já judicializadas.
 
O atual arcabouço legal permite, pois, que as instâncias judiciárias sensíveis a novos paradigmas viabilizem um sistema de múltiplas portas que possa gerar um choque de eficiência na gestão judiciária. Indispensável, pois, a destinação de recursos para intensificar as possibilidades de acesso e, sobretudo, qualificar a prestação jurisdicional.
 
Somente após a consolidação de múltiplas experiências em nível nacional é que haverá elementos para eventual proposta legislativa que regulamente a matéria. Vencidos os desafios institucionais para a implantação do sistema, caberá à sociedade, que legitimamente anseia por justiça e paz, intensa participação para que o exercício do diálogo e do consenso colabore na construção de uma sociedade mais pacífica, coesa e solidária.
 
Para a abertura dessas múltiplas portas, não se pode conceber a paz social sem a paz jurídica e, por meio da consciência coletiva do dever individual e respeito mútuo, atinge-se uma convivência humana sem diferenças geradoras de conflitos. É o dialogo e a conduta assertiva, ensinados desde os primeiros passos e em todos os cantos, que têm o condão de conduzir a humanidade ao equilíbrio da vida harmoniosa.
 
A contenciosidade cede lugar à sintonia de objetivos e os rumos da beligerância podem ser abandonados para dar lugar à Justiça doce, que respeita a diversidade em detrimento da adversidade. Descortina-se, assim, uma nova estrada que todos podem construir, na busca do abrandamento dos conflitos existenciais e sociais, com a utilização do verdadeiro instrumento e agente da transformação -o diálogo conduzido pelo mediador- no lugar da sentença que corta a carne viva.

Ministra Nancy Andrighi e Juíza Glaúcia Falsarella Foley

  Sitio publicado em 01/02/2008